Crítica | Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 06 de fevereiro de 2020

Criada em 1992 para a animação Batman: The Animated Series, de Bruce Timm e Paul Dini, a doutora Harleen Quinzel, conhecida popularmente como Arlequina, tornou-se um fenômeno da cultura pop em pouco mais de trinta anos. Logo, migrou para os quadrinhos, e ficou marcada na história do cinema com a interpretação de Margot Robbie no fraco Esquadrão Suicida (2016). Um dos muitos erros do filme foi ter romantizado a relação entre Quinn e Coringa, que, desde sua concepção, é um relacionamento abusivo. Aparentemente reconhecendo isso, a DC e a Warner resolveram dar um tratamento mais justo à personagem através de um crossover com as Aves de Rapina – equipe criada em 1996, originalmente formada por Canário Negro e Oráculo. Dessa fusão, surge Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa, que é tão “fantabuloso” quanto seu título promete.

A trama consegue amarrar o início da carreira solo de Arlequina com a origem da Canário Negro, Renee MontoyaCaçadora e Cassandra Cain através de um inimigo em comum: Roman Sionis, o Máscara Negra. Poderia explicitar detalhadamente como isso se dá, mas tiraria a graça de acompanhar em primeira mão no filme, com uma narração descontraída de Quinn. Essa constante intervenção pode gerar comparações com Deadpool (2016), só que em nenhum momento da projeção o Mercenário Tagarela vem à mente, pois se tratam de figuras muito distintas, inclusive pela forma como narram. Arlequina é uma narradora mais anárquica, constantemente esquecendo de fatos importantes para trazê-los à tona em cima da hora – o que só adiciona à experiência, pois aumenta um tom de intimidade com o espectador. Às vezes, intervém nas cenas com rabiscos, procurando em sua memória um possível motivo para um capanga aleatório querer matá-la.

Essa narração, porém, não é constante. Há muito respiro para a trama se desenvolver sozinha, sustentando-se no texto sagaz e elenco talentoso. Robbie conduz a aventura com todo o seu carisma no papel de Harley, protagonizando cenas que mesclam comédia e ação muito criativamente, com uma interação direta com os elementos à sua volta (tendência das melhores franquias de ação atuais, como John Wick e Missão: Impossível). E, por mais que Harley seja inquestionavelmente a protagonista da história, o roteiro de Christina Hodson consegue introduzir as coadjuvantes convincentemente, além de permitir que elas brilhem por conta própria.

A Cassandra Cain de Ella Jay Basco é a que mais interage com Harley, e sua atitude e estilo descolado a tornam uma das personagens mais maneiras de se acompanhar. A Canário (Jurnee Smollett-Bell) é a que tem sua origem trabalhada de maneira mais completa, com um arco bastante relacionável sobre ter que aturar um ambiente de trabalho hostil para garantir algum sustento. Isso sem falar de sua desconfiança com a polícia por conta de um evento traumático de seu passado (o que é abordado numa cena breve, mas que explica melhor a razão por estar tão vulnerável inicialmente). A Renee Montoya de Rosie Perez e a Caçadora de Mary Elizabeth Winstead também têm dramas consistentes e protagonizam ótimas cenas, principalmente de ação. No caso da última, demora um pouco para ela se integrar à trama, mas, quando o faz, se encaixa perfeitamente e tem uma das melhores piadas do filme.

Ainda temos a dupla de vilões, Roman e Victor Zsasz, vividos por Ewan McGregor e Chris Messina, respectivamente. Nenhum dos dois possui as tão cobiçadas “boas motivações”, entrando no campo do “mau por ser mau” – só que isso não incomoda aqui, pois apresentam um propósito no mosaico composto. Dá para perceber, pelas falas e atuações, as particularidades de cada um deles: enquanto o Roman de McGregor é extremamente possessivo e egocêntrico, Zsasz (assim como nos quadrinhos) é completamente sádico. Messina até consegue incorporar bastante do que pode ser visto do personagem em outras mídias (apesar de algumas mudanças), enquanto McGregor parece estar curtindo muito o seu papel, como um bom vilão deve. Ele também não aparenta ser tão unidimensional, pois há muito pathos em algumas de suas falas e reações, indicando que sua instabilidade pode ser fruto de algum evento passado traumático ou uma criação difícil – o que não é propriamente explorado, evidentemente, mas é suficiente para não ficar muito superficial.

A grande estrela, porém, é a diretora Cathy Yan, que encontra os melhores ângulos para tornar cada golpe mais impactante que o outro, além de fazer bom uso da violência gráfica para criar ênfases. Há uma boa economia de detalhes nesse sentido, sem cair no campo da violência gratuita. A direção das atrizes, que ressalta as personalidades diferentes de cada uma através de suas fisicalidades, adiciona muito ao humor – como se pode assumir, bastante físico em boa parte do tempo. Suas caracterizações, e como interagem com o ambiente, trazem essas figuras para uma total sintonia com a estética de seu tempo, aumentando o apelo para o público mais jovem.

O mais impressionante da direção de Yan é como mantém um controle sobre toda a mise en scène sem deixar de ser completamente livre na forma como se apropria dos diversos elementos disponíveis. O jeito como integra o design de produção colorido e jocoso, os sets grandiosos, os figurinos espalhafatosos, as animações, a música empolgante (uma seleção musical incrível, que vai de Joan Jett a Heart) e até as referências da cultura pop ao centro da narrativa torna a encenação ainda mais rica, como uma grande brincadeira. Em poucas palavras, posso dizer que a noção de filmes de super-heróis como parques de diversão, tão comentada no ano passado, aqui, é motivo de orgulho.

Ainda assim, não é só entretenimento alienante, pois todo o subtexto denuncia sutilmente como a noção de posse afeta negativamente a convivência das pessoas – todos os problemas surgem de algum homem poderoso querendo tomar controle do espaço de outro, seja por lucro ou pura satisfação pessoal. Nesse jogo de gato e rato, acaba que pessoas boas são obrigadas a fazer coisas erradas para se manterem vivas – mas nossas (anti-)heroínas encontram forças para superar essas amarras através da sororidade. Ou seja, é um filme sobre questões vigentes, que alia forma ao conteúdo, já que a proposta estética é toda construída de acordo com essa premissa.

Entre tantos acertos, talvez o maior erro de Aves de Rapina seja o mesmo de outras grandes obras: não saber a hora de acabar. Perde a oportunidade de fechar com sucintez para entrar numa sequência super protocolar (ainda que divertida), que parece até uma cena pós-créditos, pela necessidade de explicar tanto e estabelecer potenciais derivados. Ainda assim, o shot final é extremamente satisfatório, então, pontos por isso.

Concluo dizendo que Aves de Rapina ajuda a elevar a barra do subgênero de super-heróis, e é, tranquilamente, o melhor filme do universo compartilhado da DC. Sim, isso mesmo, do DCEU – o longa deixa bastante claro que é uma continuação de Esquadrão Suicida, e não é nem um pouco pior por isso. É tão bom que já aumenta a expectativa para o próximo Esquadrão, de James Gunn, e até nos induz a dar mais uma chance para o Coringa de Leto (não como interesse amoroso, obviamente). É uma comédia/aventura de ação estrondosa, vívida e espaçosa – uma explosão de sentimentos intensos e acontecimentos repentinos que convergem numa consciente luta contra o sistema, sem nunca abandonar o bom humor. Que desse exemplo surjam mais adaptações tão competentes e ousadas quanto, para enriquecer ainda mais o universo desses personagens que amamos tanto.

Crítica | Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa
Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa é tudo que poderíamos imaginar de um filme da Arlequina e muito mais. O resto da equipe não fica de escanteio, com um roteiro que consegue encontrar ordem no caos, e uma direção ousada e inventiva de Cathy Yan.
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