Crítica | Destacamento Blood

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 01 de julho de 2020

A Guerra do Vietnã já foi visitada e revisitada por diversos autores do cinema estadunidense, sendo tema de muitos clássicos. Oliver Stone (PlatoonNascido em Quatro de Julho), Francis Ford Coppola (Apocalypse Now), Michael Cimino (O Franco Atirador) e Stanley Kubrick (Nascido para Matar) são alguns dos nomes mais conhecidos que se debruçaram sobre o tema, todos com um olhar igualmente crítico. Porém, nesse acervo de obras, pouco se falou de uma das maiores contradições do já extremamente contraditório evento: o fato de milhares de jovens negros terem tido que lutar em nome de um país que, até hoje, os exclui sistematicamente (o que foi perfeitamente colocado por Muhammad Ali num célebre comentário sobre o assunto). E isso nas décadas de 1960 e 1970, quando, em casa, os movimentos dos direitos civis estavam em ebulição, tentando reverter essa situação. Para trazer esse recorte, poucos nomes seriam tão qualificados quanto Spike Lee, que, desde a década de 1980, é muito enfático sobre a questão racial – e, não por acaso, tem algumas de suas obras mais antigas sendo referenciadas atualmente, quando essas discussões se tornam o foco do debate público novamente (principalmente o clássico Faça a Coisa Certa).

Em Destacamento Blood, ao invés de se limitar a digressões que ofereceriam só os acontecimentos da guerra, Lee incorpora o passado ao presente – e não só a nível de subtexto, como faz na maior parte de seu antecessor, Infiltrado na Klan. Assim, Destacamento Blood acaba sendo mais dilatado e fluido em suas associações, casando perfeitamente com a premissa do longa. Nela, quatro amigos veteranos resolvem voltar ao Vietnã, após mais de cinquenta anos, para recuperar um tesouro e os restos mortais de um de seus companheiros, que morreu em combate (interpretado por ninguém menos que o próprio Pantera Negra, Chadwick Boseman). Isso permite que a busca dos protagonistas se intercale com as memórias do passado, dando ainda mais robustez à construção do quarteto. Cria-se um contraste entre os jovens que foram e os adultos que se tornaram, com as consequências do que viveram ali afetando cada um de um jeito diferente e resultando em embates acalorados.

De todos, as cicatrizes da guerra falam mais alto no arco e na interpretação do personagem de Delroy Lindo. Ele tem momentos de crise de estresse pós-traumático, monólogos distantes da ação central e, dos quatro, é o que possui os posicionamentos mais controversos. Apesar de reconhecer isso, Lee é generoso para com seus protagonistas e demonstra muito respeito e afeição por eles – e talvez o de Lindo seja o mais destacado justamente por ser o mais desafiador. Certamente, sua interpretação deve ser lembrada na temporada de premiações, pois é um papel que exige uma vasta gama de emoções – da mais extrema fragilidade a uma segurança brutal -, e o ator entrega todas na mais devida precisão. É o mais próximo que se tem de um personagem principal, apesar do longa funcionar muito mais como um filme de elenco, onde há um equilíbrio entre seus integrantes e a possibilidade para a maioria brilhar.

Em especial, lembro de Jonathan Majors (que vive o filho do personagem de Lindo) e Clarke Peters, cujos personagens também possuem dramas pessoais bem manifestos – sem falar no próprio Boseman, que só aparece em breves flashbacks, mas conta com uma presença única (e importante para entendermos o seu papel na história). Ele passa uma tranquilidade e sabedoria típicas de um líder, possibilitando que tenhamos dimensão do impacto que teve na vida do quarteto (sendo amigo, professor e, por vezes, até um guia espiritual). O roteiro já expressa isso bem explicitamente, mas mais do que entender, é importante sentir para entrarmos em sintonia com a obra.

As cenas de flashback, aliás, são eficientemente diferenciadas pela fotografia, que opta por uma textura mais rústica e um aspect ratio reduzido, parecendo mesmo um registro histórico perdido no tempo. A escolha de não rejuvenescer os atores, porém, ajuda a aproximar esses eventos do presente, mantendo uma unidade na obra, apesar de suas diversas nuances. Nuances que vão além dos flashbacks e se inserem sem quebrar essa unidade, por vezes se apresentando como desenvolvimentos naturais da trama. Assim, transita entre diferentes gêneros convincentemente (de um drama sobre o peso do passado a uma aventura na selva à Era de Ouro hollywoodiana) e inclui elementos exteriores à trama (inclusive materiais de arquivo, algo já visto na filmografia de Lee) organicamente. Uma abrangência que qualifica o projeto tanto como um drama, quanto como uma aventura e um ensaio, distinguindo-se de outras obras vinculadas à Guerra do Vietnã. E essa guinada no sentido da aventura não é mera abstração, porque está falando sobre um resgate e uma ressignificação da história estadunidense, então nada mais apropriado do que uma visita a mitos fundadores do país (ou de sua indústria cinematográfica) sob a lente do diretor. Talvez seja um de seus trabalhos mais ambiciosos, o que não é pouco, se levarmos em conta que está sempre tentando algo novo.

Destacamento Blood é, então, uma obra diferente de tudo que foi lançado até agora no ano, e mais uma amostra da maestria de Lee, após o excelente Infiltrado na Klan. Desta vez, porém, parece mais positivo quanto ao destino de seu país, com a apropriação do passado pavimentando o caminho para um futuro mais justo. Aliás, é exatamente o que a última fala do longa, proferida por Martin Luther King, expressa. Resume perfeitamente o tom e a conclusão do filme.

Crítica | Destacamento Blood
Destacamento Blood tem toda a sensibilidade e urgência que esperamos de um filme de Spike Lee, aliadas a um contexto histórico rico e flertes com gêneros clássicos de Hollywood. Consegue parecer novo e familiar ao mesmo tempo.
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