Crítica | Jornada da Vida
Num segmento do clássico Sonhos, de Akira Kurosawa, um jovem forasteiro passa por um vilarejo em meio a uma cerimônia tradicional. Lá, troca uma ideia com um velho camponês. O contraste entre os dois desnaturaliza um estilo de vida que a modernidade prega, composta por horários, aparências e indiferença. Para quebrar o ciclo, é preciso desviar do percurso e dar atenção ao outro – e é nisso que Jornada da Vida se baseia. Na trama, Omar Sy é Seydou Tall, um ator bem-sucedido que embarca numa jornada para levar um jovem fã de volta para casa. O menino, chamado Yao (interpretado por Louis Lionel Basse), resolveu sair de seu vilarejo, no norte do Senegal, para conhecer o seu ídolo enquanto estava promovendo um livro no país.
O roteiro de Agnès de Saci e do diretor Philippe Godeau consegue desenvolver bem o conflito interno do personagem de Sy. Após se sentir desconectado de sua casa na França, não podendo levar o filho para o Senegal com ele e estando no meio de um divórcio, o inicialmente relapso Seydou se sente disposto a dedicar o seu tempo a um jovem desconhecido. Aos poucos, vai se entregando mais ao presente e ficando mais à vontade com estranhos e com o próprio menino. A viagem também permite que abrace o passado de sua família, conhecendo as terras de onde veio seu pai – com quem não tinha uma relação próxima. Essa mudança no temperamento e comportamento do protagonista é perfeitamente passada por Sy, que se utiliza de seu carisma para torná-lo simpático até nos momentos em que está mais reservado.
Para além de todo esse subtexto psicológico, a sua dinâmica com Yao, pautada por diálogos reveladores de sua personalidade e algumas situações inusitadas (como a viagem de táxi) garantem algum divertimento. Apesar disso, o longa está muito mais para um leve drama de autodescoberta do que uma comédia e, nesse sentido, o roteiro funciona. Alguns elementos são adicionados sem serem propriamente explorados, como a participação da personagem Gloria (Fatoumata Diawara), mas tudo que diz respeito ao protagonista se conectando a um modelo de sociedade que desconhecia encontra força na entrega de Sy.
A principal limitação do filme talvez esteja na sua proposta estética, que se apoia demais no roteiro e não se preocupa em fazer uma tradução visual dos temas trabalhados. A crescente felicidade do protagonista poderia ter sido incorporada por outros elementos da mise en scène, como a fotografia, a edição ou até mesmo o roteiro, com a inserção de cenas novas, menos objetivas. Há uma ou outra tentativa de se fazer isso, como a interessante sequência em que o carro de Tall deve chegar ao outro lado da cidade no meio de uma cerimônia religiosa. Através da alegoria, passa muito efetivamente o choque cultural em questão, só que faltam outras situações tão simbolicamente ricas quanto essa. No geral, o longa segue o mesmo padrão desde o início, com uma fotografia muito pouco absorvente, que só se distingue pelas ambientações, e um ritmo bastante protocolar. Talvez isso parta de uma vocação austera do diretor, só que não deixa de soar apático para com a beleza da busca que está retratando. O máximo que faz é colocar um som do Bob Marley para preencher o ambiente, não deixando de ser literal demais. Acaba quase que anulando o potencial emocional do filme.
Outro ponto que poderia ter sido melhor trabalhado, curiosamente, é a participação de Yao. É um garoto inocente, com algumas sacadas mais afiadas que geram humor, só que, no geral, fica muito na mesma nota, conferindo todo o controle da dinâmica a Sy. Basse demonstra presença de tela para ter maior protagonismo, mas optam por retratá-lo de maneira muito superficial, perdendo a chance de criar uma amizade mais marcante.
Bom, em suma, uma execução pouco inspirada e meramente funcional acaba tirando um pouco da vida de Jornada da Vida – filme bem-intencionado com algo a dizer sobre como encontrar uma fuga das pressões da atualidade. Pelo menos, ainda vale a pena pela ótima atuação de Sy e a imersão no interior do Senegal, que resgata uma saudável tendência de alguns movimentos de vanguarda ao redor do mundo (mais notavelmente o Neorrealismo Italiano). Apesar disso, na prática, parece um filme mais comercial do que foi concebido para ser.
Jornada da Vida
Comentário do Crítico
Jornada da Vida conta uma história relacionável de autodescoberta, marcada por uma ótima atuação de Omar Sy. Apesar disso, uma direção protocolar e um roteiro pouco ousado diminuem o potencial que sua premissa oferecia.